domingo, 2 de dezembro de 2012

Mudanças Climáticas: "Sorte" e Desigualdade na Verdadeira Era dos Extremos


Num dos primeiros dias da COP-18, no Qatar, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês) fez uma apresentação do seu relatório especial, o SREX, destinado ao gerenciamento de risco de eventos extremos e desastres para adaptação às mudanças climáticas. Como todo material do IPCC, o SREX está disponível ao público por intermédio deste link.

Imagem de satélite de Sandy, em 29 de Oubtubro de 2012
Eventos extremos são aqueles que não ocorrem ordinariamente e incluem uma variedade de fenômenos. Aqueles ligados aos processos climáticos incluem secas severas, tempestades intensas, furacões, cheias, ondas de calor, etc. Algumas perguntas geralmente feitas são: a ocorrência desses fenômenos se tornou mais frequente? Eles se tornaram mais intensos? Como eles devem mudar em um clima mais aquecido? Que mecanismos físicos estão por trás dessas mudanças? Eventos como o furacão Sandy são causados pelas mudanças climáticas?


Incêndio florestal na Rússia,
associado a uma onda de calor
Vamos começar pelo final. A primeira coisa que precisa ser esclarecida são os próprios conceitos de tempo (no sentido meteorológico) e de clima. O tempo se refere à condição momentânea, a um único evento, à temperatura de ontem, à chuva prevista para amanhã. O clima se refere ao comportamento estatístico de mais longo prazo, isto é, se a estação úmida produziu um total de chuvas abaixo ou acima da média ou se determinado período de 30 anos apresentou temperaturas abaixo ou acima daquele que lhe antecedeu. O clima envolve o número de furacões de determinada intensidade em uma década e quão intensa é a seca que ocorre em um a cada dez anos em determinada região.

Por isso mesmo, a pergunta não pode ser formulada como "este evento foi causado pela mudança climática"? Afinal, "mudança climática", por definição, é a mudança de padrão de um conjunto de eventos de tempo. Mas eu compartilho da visão de diversos cientistas, como Kevin Trenberth, de que não é possível sair pela eterna tangente, com a resposta padrão da maioria da comunidade, que diz "nenhum evento individualmente pode ser atribuído à mudança climática", que é uma constatação óbvia, em função das próprias definições de tempo e clima. O que essa resposta omite, porém, é que há, sim, indícios de que o aquecimento global já tenha modificado a estatística de extremos e que se conhece o mecanismo subjacente. Um clima modificado pode ser comparado a um jogador de futebol que consumiu anabolizantes e estimulantes. Não é possível dizer que cada bom chute, belo drible ou forte arrancada seja causado pelo consumo de substâncias ilegais, mas é claro que o sujeito "dopado" terá, em geral, no conjunto, um desempenho anormalmente superior. Aquecer o planeta é como aplicar anabolizantes à atmosfera.

Nuvem de tempestade no sul da Alemanha
Foto de Jens Hackmann
E como é esse "doping" atmosférico? Vamos esclarecer esse ponto e responder de uma vez à penúltima e à antepenúltima perguntas. Eventos extremos tendem a se modificar por um motivo muito simples: uma atmosfera mais quente é capaz de conter mais vapor d'água do que uma atmosfera mais fria, conforme a chamada "Equação de Clausius-Clapeyron". O nome pomposo, esconde o fato de essa idéia ser bastante elementar, se pensarmos sobre o que acontece quando tiramos um objeto da geladeira e há condensação em torno dele (a água que aparece estava no ar, na forma de vapor). Num clima mais quente, tanto secas quanto chuvas extremas tendem a se intensificar. Nuvens são formadas por gotinhas e/ou cristais de gelo minúsculos, que aparecem quando o vapor se condensa em torno de partículas ainda menores, suspensas no ar, os chamados aerossóis (grãozinhos de sal, poeira, pólen, etc.). Em períodos e/ou localidades tipicamente secos, a atmosfera mais aquecida demanda mais vapor para que a condensação (e portanto a formação das nuvens) se inicie, então as secas tendem a ser mais severas. Por outro lado, nas regiões e/ou períodos úmidos, a quantidade maior de vapor que a atmosfera mais quente reteve, ao ser transportado para cima, vai dar origem a nuvens com mais água em estado líquido e/ou sólido. O resultado: chuvas mais intensas, tempestades mais rigorosas, enchentes mais severas. Aliás, este é um bom momento para esclarecer um ponto importante: em locais mais frios, no inverno, ao se aquecer a atmosfera, o efeito causado pela presença de mais vapor d'água é a tendência a nevascas maiores. É, portanto, ridículo (para dizer o mínimo), quando alguém quer negar as mudanças climáticas apresentando a ocorrência de grandes nevascas como argumento.
Enchente em New Orleans,
causada pelo furacão Katrina

O que já se sabe é que a estatística de alguns fenômenos extremos já se alterou por conta da mudança climática ocorrida. Já houve, segundo o SREX, com razoável confiança, um aumento geral da intensidade das ondas de calor em vários continentes, especialmente Europa e América do Norte, desde meados do século XX. Nesses locais, também se constatou o aumento do número de eventos de precipitação intensa no mesmo período, enquanto na África e em partes da Austrália, constatou-se o agravamento das secas. Os modelos climáticos como um todo apontam, no futuro para uma exacerbação das ondas de calor, das secas e dos eventos extremos de precipitação em praticamente todo o planeta. Em outros casos, como o dos ciclones tropicais (furacões e tufões), as tendências observadas não são tão claras, mas há indícios de que a frequência de ciclones mais intensos (como o Katrina) aumente, ainda que o total de tempestades não mude substancialmente.

Distribuição de frequência de anomalias normalizadas de temperatura nos
EUA,  por década, a partir de 1981, comparativamente ao período de
1951 a 1980. Note o deslocamento da curva tornando eventos frios raros
(em azul), tornando muito comuns eventos quentes (em vermelho) e
fazendo aparecer eventos extremamente quentes (extremidade direita
da última curva, em vermelho escuro). Fonte: NASA/GISS
O caso de ondas de calor é bem ilustrado pela figura ao lado, que mostra como gradualmente, década após década, houve um deslocamento na distribuição de ocorrência de temperaturas no sentido de tornar eventos quentes mais frequentes (o número de eventos quentes ou frios é proporcional à área pintada em vermelho ou em azul, respectivamente), bem como de fazer surgir eventos extremos do tipo onda de calor com bastante recorrência.

Uma analogia que costumo fazer, nesse caso, é com o lançamento de um par de dados, desses que usamos para definir nossa sorte em jogos de tabuleiro. Se lançamos dois dados comuns, desses que contêm números de 1 a 6 em suas faces, a maior chance é de obtermos uma soma 7 e há pequenas probabilidades de obtermos 2 ou 12 (uma chance em trinta e seis em ambos os casos). Imagine que um número elevado, no lançamento desse par de dados, represente um evento quente. Digamos que 11 ou 12 seja algo como uma onda de calor, destas que representam maior chance de incêndio florestal, perda de lavouras, riscos à saúde humana, etc. Como temos duas chances de obter 11 e uma de obter 12, a probabilidade de um evento desses ocorrer é de 3/36, ou 1/12 (ou cerca de 8,3%). Mas imagine que pintemos um pontinho extra em cada uma das faces de um dado. Um deles permanece inalterado, com faces representando números de 1 a 6. O outro, terá agora faces pintadas de 2 a 7. O lançamento do novo par de dados (com um modificado) resultará num aumento, em média de apenas um, em relação à situação anterior, tornando 8 (e não mais 7) o resultado mais provável. No entanto, as chances de eventos perigosos (total igual a ou acima de 11) aumenta substancialmente, senão vejamos: 11 antes só era obtido em duas combinações (6 no primeiro dado e 5 no segundo, ou o contrário, 5+6) e 12 requeria 6 em ambos os dados, nos dando 3 possibilidades (2 para 11 e uma para 12). No conjunto com um dado alterado, agora pode-se obter 11 com as seguintes combinações: 6+5, 5+6 e  a novidade, 4+7, pois uma face de um dos dados, que originalmente mostrava 6 pontinhos, ganhou um pontinho extra, 12 pode vir como 6+6 ou 5+7 e, finalmente, surge a possibilidade de obter 13 (6+7). Isso nos dá 6 possibilidades (3 para 11, 2 para 12 e 1 para 13) de ultrapassar o limite de risco, ou seja, o dobro de chances do que se tinha antes! Isto é precisamente o que ocorre quando se mexe mesmo que apenas um pouco no comportamento médio do sistema climático (digamos, aquecendo-o de um ou dosi graus, o que pode parecer pouco): primeiro, mexe-se muito na probabilidade de ocorrência de extremos (no nosso exemplo, essa probabilidade duplicou) e, segundo, criam-se novos extremos (onda de calor inédita, chuva recorde, furacão de categoria 6, ou sabe-se lá o quê...). Os efeitos do aquecimento global se farão sentir primeiramente não pela média, mas pelos extremos. Tomando de empréstimo do historiador recentemente falecido Eric Hobsbawn o termo, pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que as mudanças climáticas trarão uma verdadeira "Era de Extremos" para o planeta.
Resultado da passagem de Sandy pelo Haiti

Por fim, o que não pode ser esquecido é que esses efeitos dos eventos extremos não se distribuem ao acaso. Não é um simples dado alterado ou uma mera roleta viciada. A distribuição dos impactos das mudanças climáticas em geral e dos eventos extremos, em particular, está intrinsecamente ligada à desigualdade, de diversas ordens: nacional, de classe, de geração, de gênero, de etnia. De 1970 a 2005, 95% das mortes associadas a desastres naturais ocorreram em países em desenvolvimento. Na Europa, as ondas de calor atingem principalmente a população idosa mais pobre, como em 2003, quando quase 15 mil pessoas morreram na França, a maioria de pessoas de idade avançada em casas e asilos sem ar condicionado. A elevação do nível do mar está ameaçando nações, culturas e etnias inteiras, impondo uma imigração forçada, na medida em que o oceano lentamente avança sobre o território de países insulares e em que o clima e a devastação encurralam povos indígenas. O peso das secas, como discutido em outro texto, recorrentemente recai sobre ombros femininos e sobre as crianças. Tempestades como Sandy desnudam de uma vez a desigualdade nacional e de classe de forma cruel, com as 51 mortes no Haiti evidenciando a vulnerabilidade de um país atingido anos antes por um terremoto e que tinha muitos milhares de pessoas ainda habitando barracos de lona. Na Jamaica e nos EUA, moradores de rua e imigrantes ilegais preferiram enfrentar Sandy de peito aberto a procurar abrigos, temendo serem presos. Também nos EUA, onde 125 morreram em função dessa tempestade, os mais abastados puderam contar com os prêmios de seguro contra enchente. À maioria, com menos recursos, coube apenas juntar os destroços de seus lares inundados e devastados pela força da água e dos ventos. 

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