sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

É pior, sim! Por que os cientistas preferem "errar para menos"?

- Calma...  é só um peixinho normal.
Número recente do periódico Global Environmental Change publicou artigo de autoria de K. Brysse e co-autores [1] que chama atenção para algo para o quê já havia alertado anteriormente: a tendência, não apenas em vários estudos científicos, mas principalmente no discurso dos cientistas do clima, em subestimar o ritmo e/ou as possíveis consequências do aquecimento global antrópico.

Os autores desse artigo, cujo resumo é disponível publicamente, compõem um coletivo interdisciplinar, com um importante olhar das Ciências Humanas sobre o próprio comportamento dos cientistas. Suas conclusões avançam claramente no sentido oposto ao das acusações dos negadores das mudanças climáticas ou autoproclamados "céticos do aquecimento global". Ao invés de concluir que somos "alarmistas", "catastrofistas" ou coisa do gênero, o artigo mostra claramente - e explora as razões disso - que há um viés junto aos cientistas do clima para o lado oposto. Colocando de forma simples: ao invés de "aumentarem" o tamanho do monstro, os cientistas o diminuem. Algo como uma história de pescador ao contrário, em que se tenta de todo modo evitar dizer que se pegou um peixe enorme, insistindo em dizer que "é só um peixinho".


Brysse et al. afirmam que "é claro que, em seus trabalhos revisados, os cientistas do clima enquanto comunidade não têm exagerado a ameaça do aquecimento global. Quando muito, minimizaram" (grifo meu). A colocação é fundamentada em uma série de comparações entre as projeções anteriores de cientistas, usualmente sistematizadas através dos relatórios do IPCC e a realidade. Quando colocamos lado a lado observações e projeções e analisamos friamente, fica claro que a maioria dos "erros" do IPCC foi "para menos" e não "para mais" (se não houvesse um viés, erros "para mais" e "para menos" aconteceriam ao acaso, com a mesma chance de ocorrência!). Os autores mostram vários exemplos, dentre os quais destacamos:

"A elevação do nível do mar excedeu de longe as previsões: 'Satélites mostram que a média global do nível do mar subiu 3,4 mm/ano nos últimos 15 anos, 80% acima das previsões anteriores do IPCC' (Allison et al. 2009 [2])". 
"A captura de calor pela superfície do oceano entre 1963 e 2003 foi 50% maior do que esperado em cálculos anteriores. Essa diferença ajuda a explicar porque a elevação do nível do mar (por expansão térmica) é também maior do que o esperado (Allison et al. 2009, Domingues et al. 2008 [3]). Estudos mostram que o aquecimento das águas profundas é também mais generalizado do que o que se pensava anteriormente (Allison et al. 2009, Johnson et al. 2008 [4, 5])" 
"O derretimento de verão do gelo marinho do Ártico 'tem se acelerado muito além das expectativas dos modelos climáticos' (...) 'com o gelo no verão agora muito abaixo do pior cenário do IPCC'  (Allison et al. 2009, também em Stroeve et al. 2007 [6])" 
"As chuvas têm se tornado mais intensas em áreas já chuvosas e 'as mudanças recentes têm ocorrido mais rapidamente que o previsto' (Allison et al. 2009; ver também Wentz et al. 2007 [7], Allan e Soden 2008 [8], Liu et al. 2009 [9])." 
"Emissões de CO2 também estão seguindo a faixa superior dos cenários desenvolvidos em 1999 e aplicados no AR4 (quarto relatório do IPCC), mostrando que o 'cenário do pior caso' segundo os cientistas é o que de fato tem acontecido".




Mas isso se refere à comparação entre resultados de modelos e observações. Poderia ser atribuído um "viés objetivo" à nossa modelagem que nem sempre é capaz de reproduzir todos os mecanismos de retroalimentação ("feedbacks") presentes no sistema climático e que, por vezes, levam a que os modelos não sejam tão sensíveis quanto o clima realmente é (há poucos dias abordei essa possibilidade em relação à subestimação do degelo no Ártico).

Mas muito mais grave do que isso, ao meu ver (especialmente por haver muitos acertos, como nas projeções de temperatura), é o discurso dos cientistas junto ao público e aos tomadores de decisão que tem deixado a desejar. Aí, sim, fica clara a tendência a "errar pelo lado do menor drama". 

Os autores mencionam uma série de fatores que podem levar a isso. Um deles seria a própria natureza do trabalho científico:
"A contenção é uma norma de comunidade na ciência e isso tende a levar muitos cientistas a serem cautelosos e não alarmistas, desapaixonados em vez de emocionais, discretos e não exagerados, contidos em vez de excessivos, e acima de tudo, moderados em vez de dramáticos"
Com medo de serem tachados de
"alarmistas", alguns preferem ser
simplesmente omissos...
O artigo também cita James Hansen (Hansen 2007 [10]), que se refere a uma "zona de conforto" de onde os cientistas em sua maioria não preferem sair "com medo de cometerem o menor erro que seja". Mas também mostra que um determinado tipo de erro parece ser menos temido do que outro. O próprio Jim Hansen, noutro momento, admite que, na comunidade científica de clima, o medo do falso alarme (como Pedro, da fábula Pedro e o Lobo) é maior do que o medo da omissão (especialmente numa situação em que a materialização dos prognósticos não é imediata). Ou seja, especialmente sabendo que o julgamento de seu posicionamento pertence ao futuro, os cientistas preferem irracionalmente a postura de Nero tocando harpa enquanto Roma pega fogo do que o mínimo risco de virarem Pedro.



Por que são tão poucos os cientistas que se colocam
publicamente para alertar a gravidade da questão
climática? Por que insiste, a comunidade científica,
em manter o monstro escondido no armário?
Ora, a mim parece elementar como 2+2 = 4: se já deixamos para trás o nível considerado "seguro" (do ponto de vista de manter uma estabilidade climática, limitar os impactos nos ecossistemas terrestres e evitar o disparo de mecanismos de retroalimentação que possam tornar o aquecimento global auto-sustentado) de 350 ppm; se sabemos que ultrapassar 450 ppm de CO2 implica em um risco demasiado grande de introduzir mudanças profundas, danosas e, provavelmente, irreversíveis; devemos evitar a emissão da "trilionésima tonelada" de carbono, limitando nosso consumo de combustíveis fósseis a menos de  1/5 das reservas convencionais conhecidas (há indícios de que as limitações são ainda maiores).  Dado isto, os cientistas têm de mostrar quão urgente são um acordo internacional de redução das emissões e a adoção de medidas via governança em todas as esferas, que corroborem nesse sentido (em energia, transporte, agricultura, etc.). Se a gravidade da questão climática é tão óbvia, tão gritante, porque a comunidade científica como um todo não vai para a disputa da consciência social, não incide enfaticamente sobre as posições dos formuladores de políticas e tomadores de decisão, exibindo o monstro do jeito que é? Por que mantê-lo escondido no armário? Por que não girtar claramente: "lobo, lobo!"?

Como uma ponte ou qualquer edificação, uma afirmação que seja demasiado "pesada" precisa de muita sustentação para permanecer de pé. Essa pode ser uma das razões pelas quais os textos científicos são frequentemente cheios de cautela. Frases como "os resultados sugerem...", "isto se deve possivelmente a...", "há indícios de que..." e "mais estudos são necessários..." chegam até a ser lugar comum (e vejam, quando escrevo artigos científicos uso, sim, com frequência, desses recursos de cautela). Mas isso não cabe quando se trata de uma realidade tão evidente quanto a Gravitação Universal ou a Evolução das Espécies.

Talvez porque o monstro seja tão feio que, mesmo quem sabe dos detalhes de sua "feiúra" teme por olhá-lo de frente. Talvez porque o tipo de "peixe grande" que se espera da ciência seja algo claremente benéfico ou benigno, da cura do câncer à descoberta de vida extraterrestre. Nossa "pescaria", pelo contrário, traz uma série de implicações sobre como agimos, como e quanto produzimos e consumimos. Praticamente impõe, para manterem um mínimo coerência, que os cientistas do clima, senão cada um individualmente, pelo menos enquanto coletivo, através das associações, sociedades científicas, etc., sejam bastante ativos e enfáticos na comunicação pública dessas grandes conclusões.

Talvez porque exista uma predisposição do público a ignorar realidades incômodas. Talvez porque nos sintamos intimidados diante da grande mídia e temerosos ante o grande poderio político-econômico por trás da indústria de combustíveis fósseis e, no Brasil, do agronegócio. Talvez porque, surfando por sobre nossas dificuldades e vacilações, os negadores, que não dão bola para a própria reputação (pois não costumam ter muita) se comportam de maneira agressiva, intimidando ainda mais muitos da comunidade de clima (e eu entendo que muitos de nós prefiram não encarar um embate contra quem não tem compromisso com a verdade e não prima nem um pouco pela honestidade intelectual). Talvez porque, e isso abordarei noutro texto, desejemos nós mesmos que a realidade com que lidamos não existisse e, em bem menor grau, é claro, também adotemos a muleta psicológica da negação.

Passou da hora de tirar a cabeça da areia, meu amigo...
Numa condição como essa, porém, os cientistas precisam ser racionais, maduros e coerentes. E isso significa ir a público e comunicar o que sabemos sobre as mudanças climáticas, sem dourar a pílula. Não somos somente cientistas. Somos também cidadãos. Muitos de nós somos pais. Quero deixar claro que defendo que nos mantenhamos estritamente com a verdade, reportando o que sabemos, o grau de confiança (que é extremamente elevado nos aspectos mais centrais) e onde residem as incertezas. O conhecimento vigente sobre o clima deveria ser suficiente para que cada pessoa da comunidade saísse da zona de conforto de seu escritório, sua "baia" ou seu laboratório. O repasse dessa informação deveria ser suficiente para que qualquer tomador de decisão e formulador de políticas públicas se apressasse em encontrar soluções. Negar não é opção!

[1] K. Brysse, N. Oreskes, J. O'Reilley, M. Oppenheimer: Global Environmental Change, v. 23 (2013), p. 327–337
[2] Allison, I., et al., 2009. The Copenhagen Diagnosis: Updating the World on the Latest Climate Science. The University of New South Wales Climate Change Research Centre (CCRC), Sydney, Australia.
[3] Domingues, C.M., Church, J.A., White, N.J., Gleckler, P.J., Wijffels, S.E., Barker, P.M., Dunn, J.R., 2008. Improved estimates of upper-ocean warming and multi-decadal sea-level rise. Nature 453, 1090–1093.
[4] Johnson, G.C., et al., 2008a. Reduced Antarctic meridional overturning circulation reaches the North Atlantic Ocean. Geophysical Research Letters 35, L22601.
[5] Johnson, G.C., et al., 2008b. Warming and freshening in the abyssal southeastern Indian Ocean. Journal of Climate 21, 5351–5363. 
[6] Stroeve, J., Holland, M.M., Meier, W., Scambos, T., Serreze, M., 2007. Arctic sea ice decline: faster than forecast. Geophysical Research Letters 34, L09501, http://dx.doi.org/10.1029/2007GL029703.
[7] Wentz, F.J., Ricciardulli, L., Hilburn, K., Mears, C., 2007. How much more rain will global warming bring? Science 317, 233–235.
[8] Allan, R.P., Soden, B.J., 2008. Atmospheric warming and the amplification of precipitation extremes. Science 321, 1481–1484.
 [9] Liu, S.C., Fu, C., Shiu, C.-J., Chen, J.-P., Wu, F., 2009. Temperature dependence of global precipitation extremes. Geophysical Research Letters 36, L17702. 
[10]Hansen, J.E., 2007. Scientific reticence and sea level rise. Environmental Research Letters 2, 1–6.
 
 


Um comentário:

  1. eu sou pessimista, vejo que já era.... é melhor tentar prever as areas Habitaveis e tentar migrar pra lá antes da especulação imobiliaria chegue

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