domingo, 10 de fevereiro de 2013

Tergiversando Nemo: Uma grande nevasca nega o aquecimento global?

Depois de Sandy, Nemo. Nomes singelos,
tempestades... nem tanto...
Sabe aquelas coisas que você diz para si mesmo que não irá fazer mas muda de idéia em função da realidade? Pois é... Este é o caso da mega-nevasca que está atingindo os EUA e o Canadá e que está sendo chamada de "Nemo" (em que se forçou um pouco a barra, no sentido de dar nome a uma tempestade de inverno, como se faz com os furacões, tufões e demais tempestades tropicais).

O ponto é que, por mais ridículo que possa parecer, já que isto foi refutado dúzias de vezes, a negaçosfera (porção da blogosfera, tuitosfera e facebookesfera "animada" pelos negadores das mudanças climáticas) voltou a usar a ocorrência de uma grande nevasca como um pretenso argumento que supostamente contesta o aquecimento global.


Ora, como já coloquei em diversos momentos, existe uma distinção entre tempo e clima, algo que tive a paciência de tentar explicar até para o Reinaldo Azevedo... Noutro texto anterior, aprofundei o tema e discuti diferenças importantes entre as várias escalas, desde a previsão de tempo à previsão de clima em escalas. Em suma, já que clima pressupõe uma estatística de eventos de tempo, um evento meteorológico não é definidor de muita coisa, especialmente se...

... Especialmente se ele se manifesta precisamente da maneira como se espera num contexto de clima mais aquecido.

Na verdade, como a matéria-prima para grandes nevascas é vapor d'água e é preciso que ele esteja presente em abundância na atmosfera, para que ela ocorra. Daí, dois fatores que têm a ver com o aquecimento global corroboram, diretamente:

  1. Oceanos mais aquecidos permitem que haja uma maior taxa de evaporação. O vapor d'água em uma dada porção da atmosfera resulta daquilo que é transportado pela circulação atmosférica, isto é, os ventos e do que evapora a partir da superfície, principalmente dos oceanos;
  2. Uma atmosfera mais quente é capaz de reter mais calor, como é explicado de forma bem simples e didática neste link.
Consequentemente, a lógica é simples, como mostramos no diagrama acima. Quanto a temperatura é muito baixa, além da menor evaporação, a atmosfera só consegue reter uma pequena quantidade de vapor. Daí, a produção de precipitação (no caso, neve) é baixa. Em contrapartida, se a temperatura se eleva (permanecendo, claro, abaixo de 0°C!), a atmosfera passa a comportar uma maior quantidade de vapor (e, portanto, acumular mais umidade proveniente da maior evaporação). Quando essa maior quantidade de vapor é transportada para cima para formar nuvens, o resultado é que existe mais material para se condensar. Neste caso, a produção de neve é maior e, na verdade, nevascas mais intensas são exatamente o que se espera, no inverno das latitudes médias, com o aquecimento global! Isso parece contrariar o senso comum, mas é preciso ficar assimilado, de uma vez por todas.

Diagrama mostrando a forma preferencial de cristais de gelo
em função da umidade (vertical) e temperatura (horizontal).
Fonte:  
Na realidade, em temperaturas muito baixas (abaixo de -20°C, por exemplo), os cristais de gelo tendem a permanecer pequenos, não se formando os tão conhecidos flocos de neve. Eles permanecem como pequenas colunas ou placas individuais (lado direito da figura ao lado).

Para surgirem os chamados dendritos, isto é, os belos cristais cheios de ramificações que são representados nas decorações natalinas, é necessário que haja temperaturas relativamente mais altas e, principalmente, umidade elevada no ambiente (o que não ocorre, evidentemente, como mostramos, quando a temperatura é muito baixa). Esses dendritos, quando se formam, tendem a prenderem-se uns aos outros pelos ramos, produzindo os flocos de neve, como os vistos abaixo.

Flocos de neve fotografados.
Créditos: NASA / Larry Bliven
Fonte: 
http://pmm.nasa.gov/node/523
Como a temperatura da superfície do mar tem se comportado recentemente? A resposta está na figura abaixo, que mostra as "anomalias" semanais de temperatura nos oceanos, isto é, quão afastada ela está do esperado para este período do ano.

Como de praxe, na média global, ela está acima da média observada há poucas décadas atrás, com padrões localizados de temperatura bastante aquecidos (mais de 0,5°C acima do normal) sendo bem mais evidentes que padrões de temperatura abaixo da média. Próximo à costa nordeste da América do Norte, em particular e ao sul da Groenlândia, como indicado pelas setas, as anomalias de temperatura são bastante significativas, com vastas áreas entre um e dois graus (ou mais) acima do normal. 

Anomalias de TSM. Fonte: NOAA
(http://www.ncdc.noaa.gov/oa/climate/research/sst/weekly-sst.php)
É evidente que seria necessário fazer uma análise mais pormenorizada dos fluxos de vapor e das condições meteorológicas sobre a região, mas eu não me espantaria se, após estudos mais aprofundados, surgirem indícios de que nem Sandy nem Nemo teriam sido tão intensos se os oceanos não estivessem tão aquecidos. Afinal, evidências de que tempestades mais severas são um produto praticamente inevitável de um clima mais quente, como discuti noutro momento.

Trata-se de um jogo de dados, em que os mesmos estão viciados. Não é que necessariamente, toda vida, os dados viciados batam os dados normais, mas as probabilidades deixam de ser 50%-50%.

Ou, se preferirem, é como se a atmosfera estivesse "jogando dopada". Como um jogador de futebol fraudador, que consumiu anabolizantes ou estimulantes, ele continua sujeito a erra um chute ou um cabeceio ou a perder uma dividida, mas é evidente que seu desempenho, estatisticamente, muda.

Em tempo, para conhecer a opinião de outros cientistas, sugiro este artigo no Huffington Post (em inglês).

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