sábado, 19 de outubro de 2013

"RCP2.6, o Paraíso Proibido" ou "O Parágrafo que os Governos da Arábia Saudita, China e Brasil quiseram retirar do relatório do IPCC"

"Limitar o aquecimento causado pelas emissões antrópicas de CO2 com uma probabilidade de >33%, >50%, e  >66% a menos de 2°C desde o período 1861-1880, requererá que as emissões de CO2 de todas as fontes antrópicas permaneçam entre 0 e 1560 GtC (bilhões de toneladas de carbono), 0 e cerca de 1210 GtC e entre 0 e cerca de 1000 GtC desde esse período, respectivamente. Esses limites superiores se reduzem a cerca de 880 GtC, 840 GtC e 800 GtC respectivamente, quando se consideram todas as forçantes além do CO2 no RCP2.6. Um total de 531 [446 a 616] GtC já foram emitidas até 2011."

Este é o tal parágrafo mencionado no título. Alguns países (Arábia Saudita, Brasil e China) tentaram se opor a ele, mas os cientistas não cederam. Porém, mesmo compondo o "Sumário para Formuladores de Políticas" e portanto supostamente acessível à leitura por leigos, o mesmo pode ser obscuro a quem não for familiar com a ciência climática. Mas tentarei esclarecer o seu significado e porque certos governos, o brasileiro inclusive, tentaram deixá-lo de fora das páginas desse documento, que se propõe a representar o que há de mais avançado no conhecimento sobre clima.


O parágrafo se refere a uma sigla: RCP2.6. E vamos começar nossos esclarecimentos por ela, falando um pouco desse "Éden climático".

RCP2.6 (Representative Concentration Pathway 2.6) se refere ao melhor cenário possível do ponto de vista da estabilização climática. As emissões neste caso seriam fortemente limitadas para se chegar a uma curva de concentração de gases de efeito estufa (e de forçante radiativa que tem a ver com a quantidade extra de energia no sistema climático que fica retida por esses gases) do tipo "pico e declínio". O nome é dado porque ao final do século XXI, chegaríamos a uma forçante de 2,6 W/m2 em relação ao clima pré-industrial, após um pico de 3,1 W/m2.

Emissões de CO2 (em GtC) nos cenários RCP2.6 (verde),
RCP4.5 (vermelho), RCP6.0 (preto) e RCP8.5 (azul).
Comparado com os outros cenários (RCPs), como na figura ao lado, vê-se o quanto o RCP2.6 implica em opções totalmente contrárias às adotadas hoje em dia, expressas principalmente no seu oposto, o RCP8.5, em que se continuaria a queimar combustíveis fósseis "como se não houvesse amanhã" (e, parafraseando Renato Russo, no caso do RCP8.5, "na verdade não há..."). Percebam que as emissões de CO2 chegariam a um pico em torno de 2020, sendo então reduzidas fortemente até chegarem a zero por volta de 2080. A partir daí, as emissões de CO2 seriam "negativas", isto é, haveria mais CO2 sendo sequestrado e capturado do que emitido. É um mundo de florestas preservadas e de uma economia totalmente descarbonizada, movida a energias renováveis e com outro paradigma de transporte (tanto de passageiros quanto de cargo) que não a lógica do automóvel ou do caminhão a queimarem derivados do petróleo.
Concentração de CO2 nos vários cenários: RCP2.6
(verde),  RCP4.5 (vermelho), RCP6.0 (preto) e
RCP8.5 (azul).

Com emissões fortemente controladas, as concentrações de CO2 no cenário RCP2.6 chegariam a um pico por volta de 2050, abaixo de 450 ppm. Ainda assim, por ser um gás de efeito estufa de vida longa (que leva muito tempo para ser removido da atmosfera), mesmo com as emissões decrescendo rapidamente e sendo zeradas por volta de 2080, as concentrações permaneceriam ainda muito acima dos níveis pré-industriais por todo esse século, apenas retornando para valores, em 2100, em torno de 400 ppm (a serem ultrapassados na média anual provavelmente em 2 ou 3 anos).

Porque o RCP2.6 teria de ser um indicativo de que políticas públicas deveriam ser tomadas de imediato é algo que fica claro ao se analisar o que acontece com variáveis como temperatura média global, nível dos mares, etc. Afinal, emissões de CO2 levam ao aumento da concentração desse gás na atmosfera, este aumento leva a alterações climáticas e biogeoquímicas e estas, por sua vez, tem seríssimos impactos sobre a vida humana.

É o que se infere a partir da figura ao lado. As mudanças regionais de temperatura (a) e precipitação (b) no RCP2.6 tendem a ser bem menores do que no RCP8.5, de acordo com a média. Enquanto neste se espera que várias regiões continentais excedam um aquecimento de 5 graus ao final do século XXI, no RCP2.6 boa parte do aquecimento fica limitado a 2 graus, com exceção do Ártico.

Outras diferenças importantes dizem respeito ao degelo (c) e às condições oceânicas. No RCP8.5, a expectativa é a de que o gelo marinho deixe de existir durante os verões bem antes do final do século. A mais longo prazo, o derretimento completo do gelo da Groenlândia poderia contribuir com uma elevação de 7 m no nível dos oceanos (algo que seria na verdade maior, por conta do derretimento parcial do gelo antártico), mas já nas próximas décadas, vários centímetros a 1m se torna possibilidade bastante real, sob o RCP8.5. No RCP2.6 essa elevação é evidentemente menor. Ainda no que diz respeito aos mares do planeta, a acidificação esperada no RCP8.5 pode ser simplesmente devastadora, enquanto no RCP2.6 haveria danos à biota marinha mas talvez sem colapso desse ecossistema.

A importância de se ter mantido esse parágrafo no relatório do IPCC é enorme. Pela primeira vez este explicita claramente a necessidade de se impor limite ao uso dos combustíveis fósseis a fim de possibilitar uma trajetória de emissões sem comprometimentos mais severos no sistema climático, como o RCP2.6. E evidentemente os governos que apostam na exploração de reservas fósseis, inclusive o Brasil com o pré-sal, não hesitaram em expor a que interesses servem quando tentaram evitar que esse limite fosse sugerido. Entre os cenários climáticos possíveis, a irresponsabilidade desses governos e seu servilismo ante a indústria fóssil, a opção irresponsável pelo inferno da desestabilização climática ficou óbvia.

Um comentário:

  1. Vou tentar acompanhar apesar de leigo no assunto. Parabéns pela ótima aparição no vídeo do pirula.

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