segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O Quinze 2.0? Ataque da Hidra Ilógica sobre o Ceará

"(...) E se não fosse uma raiz de mucunã arrancada aqui e além, ou alguma batata-branca que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho, nessas estradas de barro ruivo, semeado de pedras, por onde eles trotavam trôpegos se arrastando e gemendo (...)"
(Rachel de Queiroz, em "O Quinze")

Açude Pentecoste, de grande porte, que
abastece a cidade de mesmo nome e no
qual a pesca era abundante hoje está com
apenas 1,7% da capacidade (dado do
Portal Hidrológico do Estado do Ceará)
e operando no volume morto.
Há pouco menos de um mês, a mídia começou a dar repercussão a algumas denúncias que estamos fazendo há muito tempo, sobre o escândalo da política de recursos hídricos no estado do Ceará, que chegou, nas eleições deste ano, incluindo o seu segundo turno, a ser citada como "modelo" em contraponto ao que todos e todas sabemos se tratar de um descalabro completo que é a gestão de Geraldo Alckmin em São Paulo. Nesse contexto, se insere uma matéria da Tribuna do Ceará, na qual sou mencionado, mas em que é dado muito mais destaque a réplicas nada verdadeiras por parte dos dirigentes da COGERH (Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos). Sinto-me na obrigação de contestar várias das informações que ali aparecem e fortalecer a denúncia que fiz. Afinal, a crise hidrológica aqui no Nordeste, ou em São Paulo, na China ou na Califórnia, é uma das vertentes da Crise Climática que, como bem colocou Rajendra Pachauri, principal dirigente do IPCC, atingirá mais cedo ou mais tarde a todo e qualquer ser humano (o próprio relatório do IPCC, como discutimos no nosso blog, é claro: os mais pobres são os mais vulneráveis e os impactos da mudança climática estão entrelaçados às diferenças sociais e às opressões de classe, de nação, de gênero, de etnia). As outras, vertente incluem os furacões e tufões mais severos, a acidificação dos oceanos, o degelo das calotas polares, tempestades e enchentes mais vigorosas, ondas de calor recorde, incêndios florestais em cada vez maiores proporções, etc.



BREVE NOTA SOBRE O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTUÁRIO DO PECÉM (CIPP)

Mapa da metade norte do Ceará, indicando a localização do
CIPP em relação a Fortaleza.
Para os que não são familiares com a realidade do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), muita informação sobre ele está acessível, inclusive em sítios da internet oficiais. Ele é, certamente, o maior símbolo do modelo neodesenvolvimentista no Ceará, devendo abrigar um conjunto diverso de grandes empresas, com destaque para uma Siderúrgica, em construção, uma Refinaria de Petróleo e um conjunto de termelétricas, com destaque para a UTE-Pecém, em duas unidades movidas a carvão.

A lista de absurdos cometidos no processo de instalação do CIPP é imensa. Envolve remoções de comunidades tradicionais, conflito territorial e por recursos naturais com o povo indígena Anacé, guerra de isenções fiscais, empréstimos - como sempre - maternais por parte do BNDES (1,4 bilhões só para a térmica), fornecimento de água doce bruta com abatimento de 50% no preço para as térmicas, impactos demográficos e sociais sobre a região, especialmente após a vinda em massa de trabalhadores (em sua maioria esmagadora homens, recrutados de outras cidades e outros estados, como Bahia e Maranhão) para as obras de construção das empresas.

Prestação de contas do candidato Camilo Santana (PT-CE),
mostrando financiamento da Aço Cearense que, ao lado da
coreana Posco, está envolvida no empreendimento da
Siderúrgica do Pecém
Como tais empregos são precários e com duração limitada ao período de obras, é evidente que a perspectiva futura de proliferação de desemprego, miséria, alcoolismo, prostituição infantil, tráfico de drogas e violência é bastante concreta. A desculpa esfarrapada de geração de renda e emprego é vergonhosa, pois empresas altamente automatizadas geram apenas poucos postos empregatícios, e para mão-de-obra especializada (a Térmica emprega somente 349 pessoas e na Siderúrgica, estimam-se 1500 vagas, incluindo escritórios em ambos os casos!). Isso é suficiente para desmontar os números ufanistas divulgados pela própria Energia Pecém (que disse ter gerado 5000 postos de trabalho sem dizer que esses trabalhadores já perderam esses empregos) e por um dos candidatos ao governo do Estado do Ceará (financiado por uma das empresas do consórcio da Siderúrgica, conforme a foto acima), que parecia usar de uma ironia cruel quando dizia que "só na obra são 8000 empregos", quando sabemos para tristeza dos trabalhadores no seu desespero por conseguir seu sustento, é realmente "só na obra", o que implica em demissão em massa assim que as tais obras se concluírem.


O PECÉM NÃO CONSUMIRÁ ÁGUA EQUIVALENTE A "APENAS METADE" DE FORTALEZA. AFIRMAR ISSO É MENTIR PARA DOURAR A PÍLULA

Segundo o próprio governo do estado, "o consumo de Fortaleza e Região Metropolitana é entre 6 m³/s e 7m³/s". Segundo dados do "Cidades Sustentáveis", que oferece uma informação mais precisa, em 2012 (o dado mais recente disponível e o maior valor encontrado), em Fortaleza, o consumo total de água (residencial, comercial, público, industrial e misto) foi 115.124.336 de metros cúbicos, o que significa, ao dividirmos esse valor por 366 dias e 86400 segundos num dia, que Fortaleza consome 3,64 m³/s.

Metáfora da realidade: o buraco é bem mais embaixo do que o
que se imagina. E quase não tem água... Não dá para
"tibungar", Cid Gomes...
Ora, o Governador Cid Gomes, aparentemente sem se importar em expor publicamente a "fundura do poço" soltou esta pérola aqui:  “A termelétrica demandará cerca de 1.000 litros por segundo. A siderúrgica, algo em torno 1.500 litros por segundo, e a refinaria, outros 1.000 litros por segundo” (3,5 m³/s para somente 3 empresas, o que equivale a 96% do consumo de Fortaleza sozinha, excluindo a região metropolitana) e novamente é o próprio governo que confirma os números totais de 5 m³/s para o complexo como um todo (Os 1500 mais 3500 litros por segundo citados por Cid). Ou seja, na verdade, o CIPP consumirá  algo entre 71% e 83% da água usada por Fortaleza+RMF, o que inclui o Distrito Industrial de Maracanaú e algumas indústria de bebidas, como a Heineken em Pacatuba. No que diz respeito a Fortaleza propriamente dita, o CIPP consumirá 37% de água A MAIS! Daí, a informação fornecida pela COGERH sobre a proporção entre os consumos de água é falsa e a Tribuna do Ceará tinha obrigação de checar a sua veracidade.


COMO CLIMATOLOGISTA, O CHEFE DE GABINETE DA COGERH É UM TOTAL FRACASSO.

Berthyer Peixoto, o chefe de gabinete da COGERH entrevistado pela Tribuna, saiu com esta: “A siderúrgica só entra em operação provavelmente em 2015. E ela não entra em carga máxima, mas progressivamente. Já a refinaria é para 2017. Até lá o próprio Eixão vai estar em carga máxima e com certeza vamos ter sistemas hídricos reestabelecidos”. A matéria do tribuna complementa: "até lá, a esperança é de que a quadra chuvosa se regularize e que as obras iniciadas pelo governo garantam abundância de água."

Primeira questão é que é preciso dizer como chegamos a ter uma reserva hídrica como a de 3 anos atrás... E para isso, usamos uma excelente ferramenta da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme): o seu Calendário das Chuvas (e também da ausência delas...).

Tivemos dois anos seguidos de chuva acima da média: 2008 (14,7% acima) e 2009 (52,3% acima!). O segundo foi absolutamente excepcional, tendo perdido, se não me engano, somente para 1985, na série da Funceme. E o primeiro, embora na média do estado, não tenha sido algo extraordinário, as chuvas foram normais no litoral e muito acima da média justamente onde era importante para abastecer principalmente o Castanhão (32,1% acima). Sim, tivemos "sorte", isto é, as circunstâncias do acaso nos foram favoráveis no que diz respeito à água. Mas 2010 foi um ano seco (32,6% abaixo) e 2011 (28,5% acima) um ano chuvoso, cujos efeitos se cancelaram, mas psicologicamente deram a impressão de que mesmo a seca voltasse, como voltou em 2010, ela não teria impactos duradouros. Daí em diante, 3 anos de seca consecutivos: 2012 (51,7% abaixo), 2013 (31,5% abaixo) e 2014, faltando ainda os meses de novembro e dezembro, mas sem maiores chances de melhorar muito os 33,7% abaixo, a números de hoje.

No cassino do clima, a COGERH entrou como aquele jogador cuja confiança excessiva foi falsamente reforçada por uma condição atípica a favor. Deveria agir racionalmente agora que teve uma condição atípica contrária! Mas não: certo de que iria arrebentar na roleta e no caça-níqueis, continuou apostando contra a Matemática das probabilidades (e, como veremos, contra a Física do aquecimento global)! E agora, se ainda não está completamente endividado, já perdeu dinheiro, na soma total (ou melhor, perdeu coisa muito mais valiosa: ÁGUA).

A Hidra Ilógica: especular com a água no semi-árido é uma
atitude completamente irresponsável. A política de recursos
hídricos em todo e qualquer lugar precisa ser democrática,
transparente e cautelosa em relação à variabilidade natural
e, sobretudo, às mudanças climáticas vindouras.
O problema maior? Firmou compromissos que nunca poderia ter firmado. Prometeu água para o agronegócio e as indústrias sedentas do Pecém. E é preciso dizer com todas as letras: NÃO VAI TER COMO CUMPRIR. Os "cappos" da máfia (o grande empresariado) já deve estar nos seus calcanhares, mas ele teima em continuar dizendo que "vai conseguir pagar" o iate e a mansão que comprou com dinheiro deles. ("Até lá o próprio Eixão vai estar em carga máxima e com certeza vamos ter sistemas hídricos reestabelecidos"). Com certeza?!? UMA OVA! Pelo contrário, é uma aposta irresponsável, leviana e totalmente equivocada.


NOVAS DEMANDAS POR ÁGUA SÃO INCOMPATÍVEIS COM CENÁRIOS DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS.

Projeções regionalizadas de clima nos biomas brasileiros da 
Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica 
(setores nordeste e sul/sudeste) e Pampa para os períodos 
de início (2011-2040), meados (2041-2070) e final 
(2071/2100) do século XXI, baseados nos resultados 
científicos de modelagem climática global e regional. As 
regiões com diferentes cores no mapa indicam o domínio 
geográfico dos biomas. A legenda encontra-se no canto 
canto inferior direito. Fonte: 1º Relatório de Avaliação 
do Painel Brasileiro sobre Mudanças Climáticas (PBMC).
Parece ser evidente que não se pode criar uma demanda de água dessas proporções sem que isso cause impactos seríssimos numa estrutura de recursos hídricos, por mais que ela tenha um bom design, especialmente quando se trata de uma região com forte variabilidade interanual. É preciso deixar claro que o funcionamento das empresas listadas anteriormente, juntamente com os empreendimentos de agronegócio, carcinicultura e mineração (a COGERH está concedendo 280 litros de água por segundo para a mineração de Urânio em Itataia, no município de Santa Quitéria) é incompatível não apenas com a variabilidade climática natural que conhecemos nas últimas décadas (o que inclui a escala interanual, com a alternância de El Niños e La Niñas (cujo efeito sobre o Nordeste é bem conhecido e pode ser conferido aqui junto a muitas outras informações) mas também escalas decadais e multidecadais, associadas a outros modos de variabilidade como a Oscilação Decadal do Pacífico, ODP/PDO, a Oscilação do Atlântico Norte, OAN/NAO,  o Modo Multidecadal do Atlântico, MMA ou AMO etc.), cujos impactos sobre o semi-árido ainda são pouco conhecidos e, sobretudo, às mudanças climáticas, onde pesam as maiores incertezas e, muito provavelmente, os piores riscos.

Para quem acha que os 3 anos de seca consecutivos seriam o pior cenário possível e que é possível dar crédito ao otimismo da COGERH, é bom rever o posicionamento. Primeiro, por conta das projeções climáticas futuras. Na Figura acima, mostro as projeções disponibilizadas pelo Painel Brasileiro sobre Mudanças Climáticas, em um documento do qual sou um dos autores principais. Especificamente no que tange a estas projeções, devo dizer, com sinceridade, que é preciso olhar para elas com cautela, por uma série de fatores (a começar do fato de ser mostrada para os trimestres de verão - dezembro a fevereiro - e inverno - junho a agosto - austrais, sendo que nossas chuvas se concentram em Março e Abril). De qualquer modo, apesar de haver uma dose significativa de incerteza, principalmente nas projeções de precipitação, a simples possibilidade de que chuvas mais escassas ou mais irregulares (ainda que em mesma quantidade) em relação ao presente se combinem a temperaturas vários graus acima das condições atuais (2-3 graus em meados do século e 3-4 ao final, com aumento na evaporação) já deveria servir de alerta para que a política hídrica para o semiárido se baseasse em uma forte dose de parcimônia.

Acima: projeções para mudanças de temperatura (esquerda) e precipitação (direi- 
ta) sobre o Nordeste Brasileiro segundo 4 cenários de emissões, do RCP 2.6 (ce- 
náriode forte mitigação) ao RCP 8.5 (cenário de mais altas emissões). Abaixo, as
projeções de temperatura (esquerda) e precipitação (direita) para meados do sécu-
lo e final do século para o RCP8.5, incluindo as projeções mais prováveis e a 25%
de probabilidade para o pior caso (temperaturas maiores e precipitações menores).
As mudanças de temperatura são dadas em graus e as de precipitação em porcen-
tagem, Fonte: Anexo I do AR5 - Atlas de projeções climáticas globais e regionais,
material suple mentar para o RCP8.5, disponível em 
http://www.climatechange2013.org/images/report/WG1AR5_AISM8.5_FINAL.pdf
Ao olharmos para as informações recém-divulgadas pelo IPCC através do AR5, essa preocupação apenas se reforça. Há acordo na perspectiva de aumentos de temperatura superiores a 2 graus já meados do século apresentada pelo PBMC, sendo que a projeção, para o cenários de maiores emissões para o final do século se exacerba, com aquecimnto médio sobre o Nordeste acima de 4°C. Ainda que com uma barra de erro bastante significativa, com modelos sugerindo desde redução nas chuvas de 25% a aumento da ordem de 45% para o RCP 8.5. Nos mapas fica evidenciado que 25% dos modelos aponta, para o final do século, um aquecimento de 4 a 7 graus na maior parte da região, enquanto, no que diz respeito à precipitação, os 25% dos modelos "mais pessimistas" apontam para um predomínio de redução das chuvas de 10 a 20%, com áreas com redução de 20% a mais de 30% a leste e a oeste do Nordeste Brasileiro.

Devo lembrar, como afirmei em vários momentos, que um clima mais quente é de mais extremos: tanto mais secas quanto mais enchentes, provavelmente acontecendo em várias escalas. Dentro dos meses de estação chuvosa, mais veranicos,  entremeados por dias de chuva muito intensa e potencialmente danosa para a agricultura,

O QUE NASCEU INSUSTENTÁVEL, SERÁ INSUSTENTÁVEL. VAI FALTAR ÁGUA. A QUESTÃO É: PARA QUEM.

Maior variabilidade em várias escalas, incertezas, chances nada desprezíveis de redução do total de chuvas. Temperaturas mais elevadas que facilitam a evaporação. Não há controle local sobre esses processos. Podemos e temos a obrigação de contribuir para mitigar as mudanças climáticas, combatendo nós mesmos as emissões locais, incluindo a exploração de petróleo que deve se iniciar após os leilões do petróleo em 2013 (com lotes sendo arrematados no mar, das proximidades de Paracuru a Icapuí), a presença de uma refinaria, o crescimento da frota de veículos automotores na capital cearense e no estado como um todo, e a operação de uma termelétrica a carvão, etc (neste ponto, permitam-me fazer uma digressão: as mais de 2 milhões de toneladas anuais de carvão queimados pela UTE Pecém equivalem a mais de 7 milhões de toneladas de CO2, o que equivale, a depender do bioma, das espécies etc., a 100 ou mais quilômetros quadrados de floresta, área ocupada por 8-9 parques do Cocó, por exemplo). É evidente que a solução depende de articulações globais numa escala muito maior do que aquela em que tomadores de decisão daqui têm ingerência direta, mas não deixa de me causar estranheza que o argumento "faça a sua parte" que é jogado para o indivíduo, por exemplo, "economize água na sua casa" não é assumido pelos próprios governos locais.

Se a Hidra Ilógica tem 7 cabeças, o Cérbero do Pecém possui
três: Termelétrica, Siderúrgica e Refinaria
O "faça a sua parte" corresponde precisamente a um controle local, o da política de recursos hídricos, que implica em responsabilidade de adaptação ao risco climático e esse controle tem faltado e tem dado lugar ao perdularismo. Algo particularmente preocupante é o fato de que a térmica começou suas operações no final de 2012 e que Siderúrgica e Refinaria ainda não foram instaladas. Ora, se chegamos, com 3 anos de seca, durante os quais somente uma dessas grandes consumidoras de água (além, claro, do agronegócio) a consumirmos praticamente todo o estoque hídrico acumulado em 3 anos chuvosos de 4 (2008, 2009 e 2011), o que acontecerá se tivermos o Pecém utilizando 5 mil litros de água por segundo? Lembrando, esse valor equivale a 20 caminhões-pipa por minuto, mais de um Acquário - cuja capacidade é de 150 milhões de litros - a cada hora ou ainda quase água suficiente para encher 5 vezes o Açude do Gavião - e seus quase 33 milhões de metros cúbicos - por ano!

As cacimbas das pequenas propriedades secam e as famílias
sofrem com o desabastecimento. Enquanto isso, grandes em-
presas consomem a água de açudes inteiros... e querem mais!
A termelétrica nasceu insustentável e permanecerá insustentável, assim como a Siderúrgica e a Refinaria, as duas outras cabeças de Cérbero, o cão-de-guarda do inferno hídrico e climático ao qual os governantes cearenses, pelo visto, pretendem conduzir o estado. Segundo fontes oficiais, enquanto a água do Eixão não chegava até o Pecém, foi criado um Sistema Adutor Sítios Novos / Pecém, com um canal adutor de 23,5 km de extensão e capacidade máxima de condução de 2000 litros de água por segundo para abastecer a térmica e outras empresas. O açude Sítios Novos, localizado em Caucaia, foi levado à total exaustão. Hoje encontra-se praticamente seco (pouco mais de 3% da sua capacidade, vide http://www.hidro.ce.gov.br/), enquanto milhares de famílias nas zona rurais de Caucaia e São Gonçalo do Amarante passaram a depender da água do fundo de seus poços e de caminhões-pipa - em ambos os casos com sérios problemas de qualidade - para terem o que beber!

A panacéia, após o Eixão, que sugará água diretamente do Castanhão e do Orós para as grandes indústrias do Pecém (aumentando a sangria que já é feita pelo agronegócio de fruticultura para exportação e pela carcinicultura no Vale do Jaguaribe), é a famigerada "Transposição do São Francisco". Tentaremos abordar o tema da transposição em maior detalhe noutro momento, incluindo a pesada propaganda dela como "solução para a seca", em contraste com o verdadeiro objetivo, de garantir água para o grande capital, mas por enquanto, acho que vale a pena alertar para evidências de que as alterações ambientais e climáticas estão causando sérios ao "Velho Chico", desde a secagem de suas nascentes, ao assoreamento, desmatamento e erosão. Assumir, a priori, que o São Francisco será capaz de a longo prazo garantir a sustentabilidade de todas as atividades às quais ele já serve de suporte já é algo temerário. Impor novas demandas ao uso da água de sua bacia, então, parece-me mais um ato irresponsável a se somar aos inúmeros que já citei.

                               
QUINZE 2.0?

Diferença entre a temperatura do mar em outubro de 2014 e o normal para
esta época do ano (anomalia). Fonte: CPTEC/INPE.
Para completar o quadro complicado, é preciso já lançar um olhar para os cenários relativos à estação chuvosa do Nordeste de 2015. No momento, o site da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), anuncia uma probabilidade de 58% de que o El Niño se faça presente de Dezembro a Fevereiro, o que poderia afetar nossa estação chuvosa direta ou indiretamente, através da "ponte troposférica" que influencia a Bacia do Atlântico. Em 29 de Outrubro, o Pacífico mostrava, como na Figura ao lado, condições anomalamente quentes ao longo da bacia do Pacífico equatorial. As anomalias de temperatura ainda estão abaixo de 1 grau nas áreas extensas conhecidas como Niño 3 e Niño 3.4, que são consideradas as mais importantes em termos de efeito remoto sobre a nossa região, mas é geralmente no final do ano que elas se intensificam. Até dezembro, teremos de ficar de olho no "menino", mas pelo menos a previsão da maioria dos modelos é a de que o El Niño fique entre fraco e moderado. Mas mesmo que isso aconteça, ainda será preciso que a situação do Atlântico evolua favoravelmente, para que não tenhamos grandes chances de mais um ano de estiagem. No momento, a porção norte da bacia está aquecida e a porção ao sul, neutra, o que favorece um posicionamento da Zona de Convergência Intertropical mais ao norte. Como um prognóstico ainda é, de fato, prematuro, aconselho acompanhar o monitoramento e os prognósticos feitos pela Funceme e pelo CPTEC/INPE, mas de qualquer modo, um quarto ano seguido de chuvas abaixo da média não só não pode ser descartado como é um cenário bastante plausível dado o quadro atual.

E esse cenário possível de chuvas escassas, em 2015, é particularmente preocupante dada a situação dos reservatórios hídricos cearenses. O boletim do portal hidrológico do Ceará para o dia 17/11/2014 aponta um quadro em que eles contêm apenas 23,3% do seu volume ocupado, numa tendência descrescente que deve prosseguir pelo menos nas próximas semanas, enquanto o período seco não se encerra. Dos 149 açudes monitorados pela COGERH, nada menos que 118 aparecem abaixo de 30% de sua capacidade e nada menos do que 73 aparecem com menos de 10% da água que podem armazenar, isto é, metade dos reservatórios está praticamente seca, incluindo o Banabuiú, terceiro maior açude do estado, com apenas 7,48% (estava com 59,8% em janeiro de 2013), o Pentecoste, sexto maior, com somente 1,66% (tinha 39,4% em janeiro de 2013), o General Sampaio, oitavo maior, com meros 3,37% (estava com 55,0% em janeiro de 2013). O próprio gigantesco açude Castanhão, que em 2009 estava com capacidade plena e no início do ano passado ainda continha 61,7% do seu volume ocupado, já está apenas com 28,6%.

A seca não é um fenômeno apenas climático (com as mudanças climáticas antrópicas, chamar mesmo o aspecto físico, das chuvas, de "fenômeno natural" já tornou-se de certa maneira impróprio...). É comum atribuir-lhes aspectos meteorológico, hidrológico, agrícola e socioeconômico, numa cascata que não é linear e que é entremeada de vários aspectos que podem amplificar ou diminuir riscos e vulnerabilidades.

A realidade terrível vivida na infância por Rachel de Queiroz, uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos, em 1915 é contada por ela num romance que carrega esse número. Ano que vem será o centenário da "Seca do Quinze" que emergiu no esteio da seca extrema de 1913, cujos efeitos se acumularam. Reviver aspectos dramáticos dos impactos de anos sucessivos de seca em pleno século XXI parece ficção, surrealismo. "O Quinze revisitado", "O Quinze 2ª Edição", ou melhor, "O Quinze 2.0" aparece como uma obra fantástica. Afinal, com as técnicas dominadas hoje para obras e medidas, com o sucesso crescente do conhecimento do clima e da capacidade de prever suas variações sazonais, interanuais e até em escala mais longa, com as possibilidades de se aplicar uma política de gerenciamento de recursos hídricos democrática e voltada para o interesse da maioria, o que explica o colapso de São Paulo e a iminente repetição da obra de Rachel de Queiroz nestas bandas do Nordeste só pode ser algo mesquinho, voraz, psicótico e doentio. É a sede de lucro, que deseja se sobrepor à sede da maioria.

"Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados,
feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz". Assim, Rachel de Queiroz narrava a morte do filho pequeno da família de Chico Bento, que inadvertidamente comeu mandioca crua e se envenenou. Hoje, muito mais veneno é destilado pela propaganda governamental, pelo cinismo empresarial, pela tentativa deles de esconder uma realidade como a que se revela hoje em São Paulo: a de que não há água para todo mundo e que hoje é o grande capital (agronegócio e indústria pesada) que dela se apropria!

ÁGUA NÃO É CASSINO! TEMOS UM GOVERNO IRRESPONSÁVEL QUE APOSTA NA SORTE!

No caso do Ceará, o Complexo do Pecém, consome 1500 litros de água por segundo, a maior parte indo para a termelétrica, com abatimento de 50% no preço. E quando as demais cabeças de Cérbero começarem a beber água com toda a sua sede? Nas palavras vergonhosas do representante da COGERH, “a siderúrgica só entra em operação provavelmente em 2015. E ela não entra em carga máxima, mas progressivamente. Já a refinaria é para 2017” e “até lá o próprio Eixão vai estar em carga máxima e com certeza vamos ter sistemas hídricos reestabelecidos”.

Nada mais falso! Esse grau de mentira não pode ser admitido! Para repor o nível dos reservatórios vamos precisar de anos com chuva acima da média e para que em 2017 estivéssemos com "carga máxima" e "sistemas hídricos reestabelecidos” precisaríamos que 2016 fosse extremamente chuvoso, já que 2015 é carta fora do baralho (e, pelo contrário, deve contribuir para agravar o quadro!). É da aposta num evento improvável como o de 2009, que só se repete a cada duas décadas ou mais em que se baseia a COGERH na gestão da água no Ceará?

É isso que obtemos quando procuramos o Atlas da Secretaria
de Recursos Hídricos, que um dia já foi fonte de consulta. É o
que acontece quando se busca muita informação que deveria
ser pública e aberta a todas e todos sobre a NOSSA água. Mas
"not found", "404" bem que pode ser o retorno de uma busca
por "responsabilidade" e "transparência" em meio à política
hídrica dos governos cearenses...
Mesmo que isso venha a acontecer e num golpe de sorte 2016 nos traga chuvas abundantes, com Siderúrgica, Termelétrica, Refinaria, agronegócio, carcinicultura etc. consumindo água como se fossem uma Região Metropolitana de Fortaleza que surgiu do nada, em quantos anos estaríamos de volta a um cenário semelhante? Ora, é preciso colocar o dedo na ferida! Tais atividades não são sustentáveis e não são cabíveis no Ceará. Precisamos de outro tipo de desenvolvimento, não desse que consuma nossa água e destrua nosso clima e ambiente.

Tamanha irresponsabilidade precisa ser exposta e mais do que isso! A sociedade cearense precisa ter acesso imediato a TODAS AS OUTORGAS de água concedidas pela COGERH, TODOS OS SUBSÍDIOS concedidos, além do que foi ofertado à UTE-Pecém e finalmente precisa ter respeitado o seu direito à água, decidindo como e onde os recursos hídricos sejam alocados. Água não rima com lucro e para que a nossa torneira não seja fechada, é preciso que fechemos a torneira para o grande capital! Água para quem precisa!


POST-SCRIPTUM: A MAIOR CONSUMIDORA DE ÁGUA, A MAIOR EMISSORA DE CO2

Segundo o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa, o Ceará é um dos cinco estados em que as emissões de gases de efeito estufa deram um salto de 2012 (os outros são Roraima, Pará, Mato Grosso e Maranhão). Nos demais estados, o motivador principal foi o recrudescimento do desmatamento, mas o principal fator no caso do Ceará foi o setor de transporte e energia, impulsionado pelo crescimento da frota de automóveis mas principalmente pelo início do funcionamento da térmica do Pecém em 2012! Funcionando com apenas uma das turbinas, ela já emitiu cerca de 2,5 milhões de toneladas de CO2, sendo sozinha responsável por 10% das emissões do estado em 2013. É evidente se tratar de um empreendimento insustentável sob todo e qualquer aspecto que se examine.




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